Moosburg Online: www.moosburg.org Stalag VII A
Stalag VII A: History oral


Amynthas Pires de Carvalho

Rio de Janeiro, 2 de julho de 1944.

O dia clareava. Quase 36 horas antes, os 5.075 homens do Primeiro Escalão da Força Expedicionária Brasileira já haviam embarcado no navio norte-americano General Mann, do Serviço de Transporte Naval (Naval Transportation Service). Embora houvesse, coletivamente, perfeita ordem entre a soldadesca, havia, individualmente, aqui, ali e acolá, no íntimo de quase todos, certa estranheza e alguma impaciência diante daquela imobilidade.

Às 6 horas da manhã, em ponto, sentiu-se, subitamente, o fremir do navio ao se movimentarem os potentes motores nas suas entranhas. Aos poucos, lentamente, como um gigante que acorda, espreguiça e sacode seu torpor, o grande barco pôs-se a deslizar pelas águas. Não tardou muito, e o aumento da velocidade começou a ser sentido.

Tudo ao redor parecia ainda adormecido, mas à medida em que o navio avançava pela Baía da Guanabara, a impressão que se tinha era que mar e terra acordavam e estremeciam como que sacudidos pela trepidação da grande nave. Mais à frente o navio passou pelo Forte da Laje e, logo depois, pela Fortaleza de Santa Cruz, onde, lá no alto de suas muralhas, formava-se sua guarnição para saudar aqueles que partiam naquela histórica e patriótica missão.

Mais ao longe, vislumbrava-se os vultos imponentes dos três destróieres da Marinha do Brasil que iriam escoltar o General Mann na sua travessia do Oceano Atlântico.

Foi no momento de transpor a barra da Baía de Guanabara que surgiu aos meus olhos o Cristo Redentor, no Corcovado, já plenamente iluminado pelo sol. Seus braços abertos me deram alento. Tive a sensação de ver na sua fisionomia serena e paternal um sorriso meigo e de ouvir de seus lábios a sublime prece. "Que Deus vos acompanhe, meus filhos!"

Daí a pouco, estávamos fora da barra. Via-se Copacabana, lá longe, o sonho de tantos e já a saudade de todos, afastar-se e esvair-se no horizonte.

Esses arrebatamentos de despedida foram quebrados por uma revista de todo o pessoal embarcado. Era imperativo ter a certeza de que todas as medidas e precauções de segurança e de prontidão contra naufrágio e incêndio fossem tomadas e rigorosamente cumpridas. Assim que o navio começou a entrar em alto mar, aguçou-se em toda a tropa a percepção de que não só íamos para a guerra mas, efetivamente, estávamos em guerra. Percebeu-se um avião que, em círculos cada vez mais fechados sobrevoava o navio, dando a impressão de que procurava uma posição mais favorável para atacá-lo. Atrás de si, rebocava um planador-alvo, conhecido como "biruta". Iniciou-se, então, um exercício de defesa antiaérea. A artilharia do navio começou a disparar fogo cerrado contra a "biruta" que, em segundos, virou frangalhos.

Embora os artilheiros tivessem demostrado sua destreza ao acertarem o alvo "na mosca", por assim dizer, fiquei a imaginar a possível extensão da destruição e tragédia que, certamente, ocorreriam se um navio, como o nosso fosse atingido, afundando com algo em torno de 6.000 homens dentro do seu bojo, principalmente ao se considerar-se que, aproximadamente, dois terços desse efetivo se encontravam alojados em compartimentos abaixo da linha de flutuação. Mesmo sabendo que quem está na guerra está sempre sujeito a situações desse gênero, não é nada agradável ter pensamentos como esse.

E, assim, o General Mann foi singrando as águas do Oceano Atlântico a uma velocidade média de 30 milhas marítimas por hora, ou seja, aproximadamente 50 quilômetros por hora. Quando chegou à altura do paralelo de Recife, anunciou-se que a escolta dos destróieres brasileiros seria substituída por uma Força-Tarefa da Marinha dos Estados Unidos, composta pelo cruzador Omaha e dois destróieres. Isso se tornou evidente quando se pôde ver na linha do horizonte as silhuetas desses navios. A mudança da escolta foi marcada por uma cerimônia marítima.

O General Mann cruzou o Estreito de Gibraltar. Ao entrar no Mar Mediterrâneo sentiu-se logo um alívio geral, pois com as águas mais calmas, o navio já não jogava e sacudia tanto quanto no Oceano Atlântico, o que fazia quase todos ficarem mareados e vomitarem quase o tempo todo.

Nápoles, 16 de julho de 1944.

Por fim, por volta das 9 horas da manhã, o General Mann chegou à Baía de Nápoles. Lentamente, o navio foi se aproximando do cais do porto em escombros, pontilhado de embarcação nos mais variados estados de destruição, mas não foi isso que mais me chamou a atenção. Ficamos impressionados com as centenas de balões cativos, presos a seus cabos e balançando no ar, com a finalidade de impedir o vôo baixo de aviões inimigos.

O desembarque teve início às 13:30 horas. Mal desembarcamos, fomos informados de nosso acampamento ficava na localidade de Agnano, a uma distância de um pouco mais de 20 quilômetros de Nápoles, e que para lá, deveríamos seguir imediatamente. Lá o Exército dos Estados Unidos havia estabelecido um ponto de reunião e distribuição de tropas, denominado Staging Area 3, localizado na cratera de extinto vulcão, o Astronia. Para chegarmos a esse ponto, teríamos que percorrer cerca de 25 quilômetros, sendo 8 quilômetros a pé, e o restante do percurso por via férrea. Por volta das 14:00 horas, iniciamos a marcha de 8 quilômetros para chegarmos à estação ferroviária de Bagnoli onde deveríamos tomar um trem da Ferrovia Dello Stato, para nos transportar, por mais 17 quilômetros até Agnano.

No mês de julho já se fazia sentir o verão europeu. O calor era intenso e ainda tínhamos as pernas bambas do confinamento e do bamboleio do navio. A caminhada feita por mais de 5.000 soldados logo atraiu a curiosidade popular. Ao nos ver sem qualquer garbo militar, desarmados e desequipados, com a aparência cansada e macambúzia, andando a passos trôpegos, foi motivo para que muitos indagassem: "Sono prigioneri?" e que outros gritassem com sarcasmo:"Brutti prigioneri tedeschi!" Alguns chegaram até a nos jogar pedras.

Posteriormente ficamos sabendo que essa animosidade se deveu a uma suposta semelhança, à distância, de nosso uniforme verde-oliva com o uniforme cinza-esverdeado do Exército Alemão.

Quando, enfim chegamos à estação ferroviária em Bagnoli e assim que desembarcamos, recebemos o comunicado de que não existiam barracas armadas ou para armar em Agnano. Com efeito, não havia quaisquer instalações para nos receber. Não havia cozinha. Não haviam banheiros. Mal haviam instalações sanitárias e três tendas para os comandantes. Para a tropa, mal havia o chão para deitar e o céu de cobertura. Aparentemente, houve mal entendido nas comunicações entre os diversos comandos norte-americanos na região. O transtorno, foi causado exclusivamente, pelos norte-americanos, mas, como sempre, alguém tem que "pagar o pato", fomos nós os soldados, que sofremos as conseqüências. Na verdade, não se tratava de falta de equipamentos e suprimentos - que existiam em abundância! Não muito longe dali, em Caserta, sede da base de operações norte-americanas, conhecida pela sigla PBS (Peninsular Base Section), havia grande depósito de todos os tipos de materiais.

Estou certo de que, se os meios tivessem sido colocados à nossa disposição, teríamos resolvido o problema e as barracas estariam armadas e prontas antes do cair da noite. A burocracia americana, no entanto, se mostrou irremovível, e já estava decidido que a correção da falha só se daria no dia seguinte.

O terreno onde passamos a noite ficava no fundo da cratera do vulcão extinto, numa depressão bem abaixo do nível do mar. Embora fizesse calor durante o dia, a noite que passamos ao relento foi gélida. Foram dez longas horas de frio intenso. Os homens se acomodaram como puderam no chão, embrulhados em capotes e mantas inadequados para as condições prevalecentes.

No fim das contas, como diz a sabedoria popular, todo mal tem sua compensação, e restou-nos, pelo menos, o alívio de estarmos livres do aperto e do ar viciado dos porões do navio. Apesar dos pesares, nos sentimos reconfortados por termos chegado relativamente inteiros ao nosso lugar de destino, e estarmos em contato direto com a natureza, podendo respirar, a plenos pulmões, o ar fresco da noite, liberto do confinamento da viagem marítima.

Passei uma noite atribulada, tiritando de frio e sujeito ao desconforto de deitar no chão duro e desigual. Mal madornava, intermitentemente, tomado pelo cansaço e torpor. Eis que, numa dessas madornas tive um sonho aflitivo - ou melhor dito, um pesadelo! Sonhei que havia entrado em combate ali mesmo onde estava e fui capturado pelos alemães.

Ainda no Brasil, ouvia sempre dizer e cheguei a ler relatos de que os alemães eram cruéis para com seus prisioneiros de guerra. Aplicavam as mais cruciantes torturas para extrair-lhes informações, não os alimentavam, e os impunham trabalhos forçados e pesados. É comum dizer que pouco se sabe a respeito do significado dos sonhos, mas acredita-se que possam ser a previsão do que, inevitavelmente, virá a acontecer.

Esse é o motivo pelo qual, até hoje, relembro e chamo aquele pesadelo "O Oráculo de Astronia".

O tempo que passamos em Agnano nos afigurava como uma eternidade. Ficamos a cismar se não estávamos condenados ao confinamento - o confinamento no navio durante a viagem e, agora, o confinamento na cratera do extinto vulcão. Nada nos disseram e, estagnados ali, começamos a sentir que de lá os cinco mil e tantos homens recém-chegados voltariam ao Brasil, sem mais nem menos, sem cerimônias, numa verdadeira aventura inútil.

Por fim veio a boa notícia de que deveríamos nos deslocar para a estação ferroviária de Begnoli, de onde as composições nos transportariam até um local chamado Cecina, a cerca de 150 quilômetros de distância, passando por Litoria, Civitavecchia, Grosseto, Caserta, Cassino e, dali, por comboio de caminhões, até Tarquinia .

Foi assim que, no dia 5 de agosto de 1944, todo o escalão avançado da Primeira Divisão de Infantaria Expedicionária, referida apenas como 1ª DIE, nome dado ao Primeiro Escalão da Força Expedicionária Brasileira, se estacionou em Tarquinia com a totalidades de seus efetivos de homens e meios.

Tarquinia aparecia como se fora uma coroa no topo de uma altaneira formação rochosa, com encostas recobertas de bosques de oliveiras, e pitoresca vista para o Mar Tirreno. É uma cidade antiquíssima, que remonta ao século 12 ou 13 Antes de Cristo, quando era habitada pelos etruscos. Ao contemplarmos o mar, éramos tomados pela saudade do Brasil, nostalgia essa que era logo contrastada pela certeza de que esse mesmo mar era o caminho de volta ao lar.

De Tarquinia partimos para região designada para nosso verdadeiro adestramento de guerra. Em Vada, distante cerca de 200 quilômetros ao norte, e, no máximo, 25 quilômetros da linha de frente na ocasião.

O deslocamento para Vada, de caminhão, foi marcado pelo que se pode considerar o primeiro acidente de maior monta sofrido pelas tropas brasileiras. O deslocamento foi feito à noite. Num certo trecho, em estrada estreita e tortuosa e terreno íngreme, o motorista brasileiro de um dos caminhões, ao cruzar um caminhão americano, foi ofuscado pelos faróis à sua frente, perdeu o controle e a viatura desgovernou-se e tombou numa ribanceira. Na queda, o motorista foi esmagado pelo caminhão, e um capitão, que vinha a seu lado, ficou gravemente ferido. Os 24 soldados que compunham a tripulação sofreram ferimentos variados, de menor gravidade. A coluna não podia parar. Por isso, os feridos lá ficaram, aguardando socorro, que só veio horas mais tarde para levá-los ao hospital mais próximo, em Grosseto.

Em Vada ficamos estacionados nas proximidades dos bosques de Cecina, na mesma área em que ficavam os imensos depósitos de materiais norte-americanos, a céu aberto. Do local onde estávamos, já podíamos ouvir nitidamente e distinguir o troar de canhões dos mais variados calibres. Foi, por assim dizer, nosso batismo auditivo da guerra.

Região de Vada, Tarquinia, 18 de setembro de 1944.

Finalmente chegou o dia do nosso verdadeiro batismo de fogo.

As tropas brasileiras que entraram pela primeira vez em ação na Itália recebeu a denominação de Destacamento FEB, sob o comando do General de Brigada Euclydes Zenóbio da Costa, e diretamente subordinado ao 4º Corpo do Exército norte-americano. De 15 para 16 de setembro de 1944, o Destacamento FEB iniciou suas operações, em substituição a um batalhão americano. A marcha para o combate se deu numa ampla frente entre o Mar Terreno e o rio Serchio, em terreno acidentado e rochoso. Avançando com o ímpeto impulsivo característico do General Zenóbio da Costa, as forças brasileiras atacaram e tomaram a cidade de Camaiore, com uma população de aproximadamente 5.000 habitantes, na época, apesar da intensa oposição de fogos de artilharia e de morteiros oferecida pelo inimigo. Essa conquista foi muito significativa para o eventual desfecho da campanha na Itália, pois contribuiu para aliviar a pressão na frente de Florença e para dar seqüência ao avanço em direção ao norte.

Após a conquista de Camaiore, o Destacamento FEF continuou avançando numa frente que se alargava por 12 quilômetros, já nos contrafortes dos Montes Apeninos, com elevações de 600 a 1.300 metros, cujos pontos altos estavam ocupados pelo inimigo, muito bem posicionados, com ninhos de metralhadoras e apoio de numeras seções de morteiros.

As operações do Destacamento FEB eram marcadas por constantes encontros de patrulhas. Tomei parte de muitas dessas patrulhas. No cômputo geral, os brasileiros sempre levaram vantagem sobre o inimigo. Além desses entrechoques, o inimigo nos fustigava constantemente, o que nos fazia, em muitas ocasiões, procurar abrigo debaixo de qualquer coisa que desse proteção, até debaixo de mesas, principalmente quando íamos comer nossas rações.

Eram raros os momentos de calmaria. Lembro-me bem que, numa tarde, num desses interlúdios, aproveitei para tomar um banho numa das casas de italianos que havíamos ocupado no transcorrer das patrulhas. Enquanto me deleitava com essa restaurativa ablução, já todo ensaboado, os alemães acharam por bem pôr cabo à minha tranqüilidade com uma violenta tempestade de tiros de morteiros. Mal consegui vestir a cueca e sair à busca de abrigo. Logo notei que um dos membros da família, um senhor aparentando uns 70 anos, havia sido atingido no ventre, por um estilhaço de projétil de morteiro. Sangrava profundamente, e ficou recurvado, gemendo de dor. Nesse instante, ouvi vozes que vinham de outra dependência da casa. Eram as vozes das netas do ferido que, aos prantos, gritavam, "nono! Nono!" lembro-me bem da localização desta casa - Via Cesare Battisti, nº 29. Parece que foi ato da Divina Providência. Os alemães deram uma trégua. Volta e meia, sem que eu a procure ou queira, a cena de reproduz em minha mente, com muita nitidez e em cores vivas: Eu, seminu, ensaboado, com um homem ferido nos braços, entregando-o aos cuidados de suas netas. Só não ousei ficar para ajudar nos curativos, ao optar pelo dever de soldado, e voltar logo a meu corpo de tropa, em vez do dever humanitário.

Região de Barga, Toscana, 22 de setembro de 1944.

Convencionalmente, os dias santos, e feriados e outras efemérides de grande importância e significado aparecem nas folhinhas e calendários em vermelho. Que cor devo eu escolher para o dia 22 de outubro de 1944, o dia que deu início a uma das passagens mais marcantes e trágicas de minha vida?

Pois bem, no dia 22 de outubro de 1944, foi-nos dada a missão de fazer uma patrulha de reconhecimento, com um efetivo de 19 homens, para determinar a posição dos alemães à nossa frente. Eu fazia parte do grupo do Sargento José Caporicci. Saímos às 2 horas da madrugada. Chovia bastante. O terreno era acidentado. Tivemos que avançar lentamente, não só por causa do mau tempo e das condições topográficas mas, também, pelas precauções que tínhamos que tomar. Estávamos alertas para possíveis encontros com patrulhas inimigas e, em especial, para evitar dispositivos que poderiam disparar alarmes e revelar nossa presença. Fios disfarçados e quase invisíveis para acionar minas, e outros artefatos colocados pelos alemães.

Nessas circustâncias, levamos mais de sete horas para percorrer um trecho que, normalmente, poderia ser percorrido em menos de uma. Por fim, alcançamos o vilarejo de Galicano, na região de Barga, na Toscana. Já, nessa altura, eram 7 horas da manhã. Deparamo-nos com um grupo de mulheres que acabavam de sair de uma igreja, onde haviam assistido à missa. Quando nos viram, elas logo notaram, pelo uniforme e distintivo, que éramos brasileiros. Colocaram as mãos na cabeça, em sinal de rendição, e quase cochichando puseram-se a gesticular e apontar com os polegares voltados para a retaguarda, enquanto diziam: Tedeschi! I Tedeschi! Sono vicini! Molto vicini! Guarda!

A patrulha era comandada pelo Segundo Tenente Manoel Barbosa da Silva, que, além de não dar ouvidos às advertências das mulheres, voltou-se para nós e disse que se algum de nós tentasse correr, ele atiraria para matar. Porque fez essa ameaça, ninguém sabe e nem jamais ficará sabendo, pois não havia passado pela cabeça de nenhum de nós deixar de cumprir com o nosso dever.

Com efeito, jamais se poderá saber porque o tenente agiu como o fez logo em seguida. Coragem? Bravura? Destemor? Ignorância? Incompetência? Desconhecimento de táticas militares? Falta de bom senso? O fato que foi que, sem procurar cobertura, avaliar a situação do terreno, colocar a patrulha em posição de combate, o Tenente Manoel Barbosa da Silva, sem procurar cobertura, sem avaliar a situação do terreno, sem colocar a patrulha em posição de combate, avançou uns 200 metros e, em pé, pegou o binóculo e vasculhou o terreno, da esquerda para a direita, e da direita para a esquerda. Ele deve ter localizado os alemães, porque pegou a carabina M1A1, geralmente fornecida aos oficiais e, em pé como estava, apontou e atirou.

Foi a mesma coisa, como se diz no interior de Minas Gerais, que "futucar caixa de marimbondo caga-fogo com vara curta". Os alemães começaram a disparar fogo cerrado contra nós. O Tenente Manoel Barbosa da Silva recebeu um tiro de fuzil no meio da testa e teve morte instantânea. O Sargento José Ferreira de Barros Filho e três soldados que estavam ao lado do tenente e presenciaram sua morte, lançaram-se ao chão e rastejaram, arrastando com eles o tenente morto, e conseguiram alcançar uma cocheira, cuja entrada ficava bem em frente dos alemães.

Mal o sargento e os três homens que o acompanhavam penetraram na cocheira, os alemães lançaram sobre a mesma uma descarga de tiros de fuzis, metralhadoras, morteiros e granadas incendiárias, ao mesmo tempo que iam se aproximando para invadí-la. A cocheira, que era de madeira e, além disso, deveria estar cheia de feno seco, virou um inferno de labaredas num piscar de olhos. Nossos homens, por milagre, conseguiram sair ilesos, mas tiveram que deixar para trás o corpo do tenente.

Muito tempo depois, me deram a notícia de que, do desafortunado tenente, mal encontraram, em meio ao carvão e as cinzas, a arcada dentária e as placas de identificação.

`Neste meio tempo, nossa artilharia, percebendo as explosões, lançaram uma barragem de tiros sobre o local. Na esperança de escapar, pedi a proteção de Deus e saí rastejando. Balas zumbiam em todas as direções, e cascas de árvores caíam sobre mim como um temporal de granito. Não consegui progredir muito porque notei a presença de um pelotão de austríacos entrincheirados logo à minha frente. Passei umas duas horas procurando uma brecha para escapar. De repente, fui abordado, por trás, por um oficial alemão com uma pistola automática em punho. Apontando a arma para a minha cabeça, perguntou:

-Amerikaner?

-Brasileiro! - respondi.

O oficial tomou-me o fuzil Springfield e fez com que eu o acompanhasse.

Segundo a sabedoria dos ditados populares, ninguém morre antes do dia. Naquele dia, de funesta memória, tanto eu com o oficial alemão poderíamos ter morrido. Quando ele me apanhou, de surpresa, por trás, poderia ter-me executado, incontinente, com um tiro na nuca, sem qualquer cerimônia ou preliminares. Com efeito, não era incomum matar prisioneiros de guerra, a sangue frio, mesmo desarmados. Tanto os alemães quanto os aliados, principalmente os russos, o fizeram com freqüência. A bem da boa verdade, há relatos de que soldados brasileiros mataram, sem mais nem menos, prisioneiros alemães, já com os braços levantados para se renderem. Eu também poderia ter matado o oficial alemão. Inexplicavelmente, ele me tomou o fuzil, mas não me fez entregar a baioneta que levava na cintura. Ademais, em vez de mandar que eu fosse na frente, fez-me acompanhá-lo. Passou-me pela cabeça aproveitar a oportunidade para tentar dar-lhe um golpe de baioneta pelas costas, porém não o fiz pela quase certeza de que havia soldados alemães por perto, observando nossos movimentos.

O oficial alemão me conduziu a uma casamata, onde me entregou-me aos soldados que lá estavam. Senti, naquele momento, na penumbra daquele abrigo subterrâneo blindado, uma espécie de calafrio e minhas pernas bambearam. Veio-me à mente o temor, de longe arraigado, de que havia chegado o momento em que os alemães iriam me submeter às terríveis torturas, tais como arrancar-me as unhas, aplicar-me choque elétricos, queimar-me com cigarros, colocar-me durante horas diante de focos de luz intensos, pendurar-me pelos dedos dos pés, e coisas piores para arrancar-me informações. Respirei fundo e procurei reunir forças para sofrer, com denodo, o que estava prestes a acontecer. Fiz uma oração mental e balbuciei cá comigo mesmo: Seja lá o que Deus quiser!

Os alemães me revistaram da cabeça aos pés, mas sem qualquer agressão física. Não tendo encontrado, no meu uniforme e corpo, qualquer coisa que lhes chamasse a atenção, logo se desinteressaram por mim. O oficial, então, ordenou que dois soldados alemães me levassem a Castelnuevo di Garfagnana, onde havia um centro de recebimento de prisioneiros.

Percorremos um caminho em meio a um bosque de castanheiros. O fogo de nossa artilharia continuou incessante na região. Estilhaços de morteiros choviam sobre as árvores, muitas vezes sacudindo os galhos e fazendo cair sobre nós frutos de castanhas, eriçados como se fossem pequenos ouriços verdes ou amarelados. Eu queria me abaixar, como se estivesse tentando me proteger dos estilhaços, mas os alemães se mostravam inabaláveis e indiferentes ao que se passava a seu redor. Meu medo de ser atingido provocou neles risos sarcásticos, enquanto diziam, "Scheisschiesserei von Ihren eigenen Scheisskameraden! Keine Gefahr!" - como se quisessem afirmar que se tratava apenas de um " tiroteio de merda de meus companheiros de merda, sem qualquer perigo". Não pude deixar de ficar impressionado com o sangue-frio e descaso daqueles soldados para com a possibilidade de receberem um impacto. Num certo momento, um estilhaço de projetil de morteiro atingiu a bota de um deles. Ele o pegou, examinou, e depois o lançou para longe com o maior desdém.

Já escurecia quando, por fim, chegamos a Castelnuevo di Garfagnana. Enfiaram-me num lugar escuro. Não tardou muito e recebi a companhia de um sargento e de três soldados de nossa malfadada patrulha. Junto com eles, veio também um jovem italiano, que depois fiquei sabendo tratar-se de um partigiano, o nome dado ao seguidor de um partido ou partidário, ou mais específicamente, um guerrilheiro que opera dentro das linhas inimigas.

A essa altura dos acontecimentos, há mais de 20 horas sem nada comer, apesar do cansaço, angústia e tensões, já sentia muita fome. Algumas horas depois, os alemães deram a cada um de nós uma pequena porção de sopa. Demos graças a Deus.

O partigiano italiano tomou a sopa quase chorando, dizendo ter certeza de que essa seria sua última refeição. Quanto a nós, disse ele apontando em nossa direção, seríamos enviados para um campo de concentração na Alemanha. Já no caso dele, disse ter certeza de que seria executado dentro das próximas horas. Quando os alemães capturam partigiano, mandavam que eles cavassem as próprias covas e eram, em seguida, exterminados com um tiro na nuca. Apontando para sua insígnia de partigiano, disse que não tinha como escapar. Sugeri, então, que ele arrancasse a insígnia e a jogasse na fossa da privada, ao que ele bateu palma e disse: "Bravo! Bravo!" - não sei se por sarcasmo ou por aprovar a idéia. Disse que era isso o que iria fazer, mas temia que os alemães já soubessem que ele era partigiano.

O que aconteceu com esse podre rapaz italiano, eu nunca soube.

Passamos o resto da noite deitados no chão duro, forrado apenas com jornais.

Na manhã seguinte, os alemães me tiraram as galochas que usávamos recheada de jornais e capim para proteger do frio, o gorro de lã, e a blusa ou jaqueta de campanha, ou field jacket, do Exército dos Estados Unidos, que recebemos para completar nosso uniforme de combate. Essa jaqueta era muito confortável e prática, que era usada, no exército americano, por todos, desde general de cinco estrelas até soldado raso. Ouvia-se dizer que, inicialmente, os altos oficiais brasileiros não gostavam de usar essa blusa. Não pude imaginar, naquele instante, a falta que essas peças iriam nos fazer nos próximos seis meses de frio intenso pelo qual passei, muitas vezes à temperatura abaixo de 28 graus negativos.

Desse centro de coleta de prisioneiros, os alemães arrebanharam uma leva para ser enviada mais para o Norte, à cidade de Parma, localizada bem no centro do Vale do Rio Pó, famosa não somente por seu queijo e presunto como, também por sua importância histórica e geográfica. Os vestígios de Parma datam do século 6 Antes de Cristo, tendo sido fundada pelos etruscos. No período, foi um importante entroncamento ligando a Via Emília com a estrada que leva à Mantova e La Spezia.

Todo o trajeto foi percorrido a pé, em marcha forçada, durante 24 horas ininterruptas. Formando esse rebanho de prisioneiros haviam soldados de praticamente todos os países que participaram das Forças Aliadas. Ale'm de nós brasileiros, que não éramos muitos, haviam americanos, ingleses, canadenses, franceses, poloneses, e outros que não sou capaz de lembrar. Essa marcha foi um terrível suplício - famintos, sedentos, mal vestidos, praticamente descalços, esgotados, desmoralizados e sem esperanças.

Durante todo o percurso, enquanto íamos descendo, em sentido contrário, observávamos intermináveis filas de viaturas dos mais diversos tamanhos, tipos, marcas e países de origem. Tornava-se evidente que os alemães haviam pilhado e estavam usando todas as espécies de veículos dos lugares onde estiveram. Além daqueles de fabricação alemã, como Mercedes Benz BMW, Auto-Union, DKW, Wanderer, haviam carros franceses, russos, italianos, bem como os que haviam capturado dos americanos e dos ingleses. Variavam de pesados caminhões, furgões, camionetas, até carros de passeio. Para piorar nossa situação, vinham também longas filas de motocicletas, inclusive aquelas com carrinhos laterais atrelados, que nos forçavam a caminhar fora da estrada. Estavam todos sobrecarregados de materiais e suprimentos e superlotados de homens.

Com o Tráfico intenso, levantavam-se nuvens de poeira, que aumentavam nosso desconforto e sofrimento. Para intensificar a angústia da sede, a garganta ia ficando cada vez mais ressequida, e os olhos ardiam como se neles se tivesse esfregado pimenta-malagueta.

Haviam trechos em que a rodovia corria paralela à ferrovia. Desciam também longos comboios formados por locomotivas, vagões e outros tipos de material rolante, procedentes de todos os países subjugados. Ainda traziam os letreiros em francês, polonês, romano, búlgaro, russo, e outros que não consegui identificar. Em nenhum trecho do caminho deixei de ver a fila contínua de carregamentos em direção ao Sul. Isso mostrava que os alemães estavam dispostos a lutar para se manterem na Itália a qualquer custo.

Em igual proporção à disparidade de veículos, materiais e equipamentos, era evidente, também, a grande miscelânea de homens. Avistava-se grande variedade de uniformes, ouvia-se diversas línguas e dialetos, notavam-se as diferenças de feições e constituições físicas. As aparências dos soldados eram rudes e, às vezes, animalescas. Seus semblantes estampavam as marcas da guerra. Eram indivíduos que haviam perdido as características e valores humanos para se tornarem uma massa amorfa grosseira, monotonamente coletiva. Revelavam a inevitável certeza de ir e a dolorosa incerteza de voltar. Além da presença de alemães de todas as regiões do país, apareciam romenos, húngaros, búlgaros e, notadamente, austríacos. Dizia-se que haviam até batalhões de russos e de outras nacionalidades, forçados a combater ao lado dos alemães.

Em geral, esses homens pareciam não atentar para a longa coluna de prisioneiros que os cruzavam ao longo do caminho. Tinha-se a impressão de que cenas daquele gênero eram lugar-comum para eles. Volta e meia, no entanto, passavam magotes de soldados que agiam como bestas irracionais e se divertiam ao nos hostilizar. Dentre esses, os mais virulentos eram os chamados Alpenjäger, ou seja os Caçadores Alpinos ou Tropa de Montanha, oriundos da região de Balzano e Trento, no Norte da Itália, que havia pertencido à Áustria até o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando foi anexada à Itália. Era voz geral que esses soldados, até mesmo para os italianos, eram uma verdadeira escória, sem as qualidades do austríaco ou do italiano. Ao passarem por nós, nos dirigiam insultos e palavras afrontosas. Apedrejavam-nos, jogavam-nos toda sorte de sujeira, cacos de vidro, pedaços de madeira - enfim, qualquer projétil que lhes estivesse a mão. Certa feita, ao identificarem o nosso grupo de brasileiros, começaram a nos lançar vitupérios, seguidos de uma saraivada de pedras e outros objetos: "Brasiliani bastardi! Razza di cani! Negri puzzolenti! Brutti! Schifosi!" e outras blasfêmias e palavras de baixo calão, dos quais a língua italiana é tão rica.

Começamos a notar que, entre os contingentes alemães, era cada vez maior o número de batalhões formados por meninotes aparentando 15 a 17 anos. Em seus estertores na guerra, Adolf Hitler e seus comparsas, já tendo visto dizimados os seus exércitos regulares, passaram a recrutar adolescentes para combaterem nas linhas de frente.

Num acostamento da estrada, havia um caminhão de transporte de tropa parado, cheio desses soldados-mirins. Ao passarmos por eles, devemos ter despertado sua curiosidade. Parece que foi a primeira vez que viram pessoas de feições e compleições diferentes das suas. Começaram a perguntar aos guardas quem éramos e de onde vínhamos.

Brasilianische Krigsgefangenen - replicaram os guardas, para explicar que éramos prisioneiros de guerra brasileiros.

Foi uma cena não muito diferente de um grupo de escolares visitando um jardim zoológico, querendo se aproximar e tocar em animais exóticos. Entramos na sua brincadeira e ficamos a fitá-los e fazer caretas para assustá-los. Só não se aproximaram porque os guardas, sempre armados de fuzil com baioneta calada, os escorraçaram e os afastaram.

Mesmo na minha condição de prisioneiro de guerra dos alemães, submetido aos mais penosos castigos e sofrimentos, fiquei comovido com o que vi. Era triste contemplar aqueles rapazelhos imberbes, quase desaparecendo dentro de seus uniformes, pele lisa, rosada, feições delicadas, quase femininas, olhares inocentes, na faixa etária em que, em outras circustâncias, estariam ocupando os bancos de escolas secundárias ou divertindo-se em folguedos comuns aos jovens, a caminho da carnificina da guerra, muitos certamente, com seus poucos dias de vida já contados e outros condenados a terríveis mutilações, apenas para satisfazer a louca ambição de seus maiorais. Marchavam para a morte e, talvez, não sabiam porquê. É bem verdade que nasceram sob a pregação de guerra, foram doutrinados para guerrear, e agora marchavam em direção aos matadouros dos campos de batalha. Naquele instante, não os vi como inimigo. Com efeito, me apiedaria deles, como se apiedaria de qualquer outro ser humano, meu próximo, preso a um destino cruel e inexorável.

Depois de caminhar 24 horas sem pausa, chegamos ao centro de recolhimento de prisioneiros de Parma. Mal chegamos, e nos puseram a trabalhar. Já é coisa muito conhecida e repisada, seria preferível que o trabalho forçado de prisioneiros é quebrar e carregar pedras. É preferível que isso fosse verdade, porque pior do que carregar pedras é carregar madeira. Foi o que fizeram os alemães. Nos puseram a carregar madeira de todos os tipos - toras, tábuas, barrotes, pranchas. Nossas mãos e ombros logo ficaram em petição de miséria, com bolhas de água, calos de sangue, feridas, farpas enfiadas na carne.

Uma das condições mais angustiantes para um prisioneiro de guerra é o fato de jamais saber qual é o seu destino - não sabe para onde vai, não sabe se vai ser transferido, não sabe aonde chegará. Daí, tem que encontrar muita força de vontade, muita resignação, muita paciência e, acima de tudo, precisa Ter muita fé, principalmente quem professa uma religião e crê em Deus. A vida, tal qual a entendemos em situações normais, perde o significado. A morte, quase sempre uma morte lenta, está constantemente à espreita. Além disso, quando o corpo pede cama, as intempéries pedem abrigo, o estômago pede comida e bebida, a dor pede alívio, o algoz maquina uma nova forma de causar sofrimento e penúria.

Ás altas horas da madrugada, os alemães nos puseram novamente a caminho. Recebemos ordens para nos meter em cima de caminhões, onde fomos espremidos como se fôssemos sardinhas em lata. Evidentemente, não nos disseram para aonde iríamos. A nós não cabia saber. Um vento incessante e penetrante até a medula óssea soprava de todos os lados. O frio era intenso. Sem agasalhos como nos encontrávamos, estávamos prestes a congelar. Lá fomos nós, estrada a fora, batidos, chocalhados, jogados aos solavancos, para a frente e para trás e para os lados, a mercê da estrada esburacada.

Ao cabo de algumas horas de viagem, chegamos às margens de um rio, que supus ser o rio Parma, um afluente do rio Pó. A ponte, que outrora lá existiu, foi destruída pelos bombardeios aliados. Via-se, ainda, projetando-se da flor da água, os escombros de alguns dos segmentos de seu vão. A travessia deveria ser, pois, feita em balsas.

Para nossa surpresa, e para nos sacudir de nosso torpor, irrompeu-se um acerrado bate-boca entre os motoristas e os operadores das balsas em torno da conveniência ou não de enfrentar a corrente muito forte naquele trecho do rio. Pareceu-me fora dos padrões tradicionais e da crença generalizada do comportamento imperturbável e da mentalidade dos alemães, vê-los vociferando e gesticulando, à moda do proverbial, sobre o que fazer naquelas circunstâncias. Cada um dava seu palpite e a confusão foi se transformando em pandemônio. Para todos nós, em cima dos caminhões, tudo pareceu no mínimo divertido. Como por fim se tornou evidente, não houve consenso, e os caminhões deram meia-volta e avançaram para procurar outra passagem mais conveniente em direção ao Norte.

Quando o dia começou a raiar, eis que nos vimos retornando a Parma, exatamente no ponto onde havíamos partido.

As 24 horas do dia na vida de um prisioneiro de guerra são contadas como um rosário de desesperança, fome, sede, trabalhos forçados, angústia, mesmice... As últimas 48 horas, no entanto, nos trouxeram a excitação da ida e volta sem propósito, e umas 5 horas após nosso regresso à Parma, juntaram-se a nós uma leva de 5 prisioneiros norte-americanos. Da nossa parte foi, sem dúvida, uma agradável surpresa, se bem que uma desgraça para eles. Imediatamente trataram de conversar conosco:

-Any of you guys speak English? - disseram quase ao mesmo tempo para indagar se algum de nós falava inglês.

-How's file in this fucking whorehouse arond here? - perguntou um deles, querendo saber como era a vida no puteiro em que estávamos.

-Sorry, boys! No English. Only Portuguese. Some Italian - respondi, para dizer que lamentávamos, mas nada de inglês; falamos português; um pouco de italiano."

Foi para nós, e especialmente para mim, um alento, quase um novo sopro de vida, sentir a naturalidade, o estado de espírito arrebatado, a indiferença com que aqueles americanos encaravam a realidade da miserável situação de prisioneiros de guerra dos alemães. Eles certamente tinham plena consciência e certeza do que lhes aguardava pela frente, mas pareciam levar tudo na brincadeira, como se estivessem numa excursão campestre num dia de folga. Riam, divertiam-se infantilmente, imitavam gestos e modo de falar dos alemães.

Por alguns instantes, sentimos, nós brasileiros, até humilhados e constrangidos com nossa profunda tristeza e desânimo. Com evidente prova de coragem e desafio, nossos novos companheiros de desventuras pareciam querer mostrar aos alemães, que eram superiores a eles. Seu comportamento despreocupado e mostra de confiança nos contagiaram e sentimos uma nova disposição. Que viesse pela nossa frente o que viesse. Não estávamos sós e sentimos orgulho de sermos companheiros de prisão de gente daquela estirpe.

Até onde nos foi possível, trocamos nossas experiências, nossas ansiedades, nossas esperanças, numa curiosa mistura de palavras, gestos e mímicas. Nossa língua franca, por assim dizer, era o italiano, salpicado de palavras soltas em inglês, francês e até alemão, e dos primeiros termos e expressões que nos viessem à mente em nossos próprios idiomas. O extraordinário foi que nos entendíamos perfeitamente.

Vinte e quatro horas após nosso regresso à Parma, os alemães nos fizeram subir novamente nas carrocerias dos caminhões , e formaram uma longa coluna para nos levar a outro campo. Só com nossa chegada ao destino ficamos sabendo que tínhamos sido levado para Mantova. Passamos por diversas cidades, inclusive Modena. Durante todo o percurso, a aviação aliada metralhou o comboio com intensidade. Os caças vinham em vôo rasante e varriam a coluna de caminhões com rajadas de metralhadora, enquanto os motoristas procuravam fugir, e lançavam as viaturas, a alta velocidade, para dentro do primeiro abrigo que encontravam - galpões, debaixo de árvores, qualquer coisa que proporcionasse cobertura. Sem termos onde nos agarrarmos, éramos jogados de um lado para o outro violentamente, e só não fomos lançados para fora por causa dos encostos laterais. Só nos restava rezar e pedir a Deus que nos poupasse. Embora jamais ficasse sabendo quantos caminhões saíram de Parma e quantos chegaram a Mantova, Deus certamente ouviu nossas preces pois, que eu tenha visto, nenhum caminhão foi atingido.

Por fim chegamos relativamente inteiros a Mantova, uma cidade situada na fértil planície Lombardia. Como praticamente todas as cidades italianas, Mantova tem uma longa e gloriosa história que remonta a muitos séculos Antes de Cristo. É banhada pelo rio Mincio que, ao Norte, forma três lagos. Foi em Montova que nasceu e viveu o poeta Virgílio [ Publius Virgilius Maro] (70-19 a.C) e, lá, inspirado pelos seus campos e paisagens banhados pelo sol ou recorto de névoa, bem como pelos prazeres de sua vida rural, escreveu suas obras-primas, a Eneida, as Bucólicas, as Éclogas, e as Geórgicas.

Era em Mantova que os alemães organizavam levas de 700 a 1.000 prisioneiros de guerra para serem eventualmente, transportados por via férrea à Alemanha. O embarque, geralmente, ficava aguardando a chegada de comboios que traziam italianos fascistas, recrutados para lutar ao lado dos alemães.

Os prisioneiros eram divididos em "currais" onde havia barracas de madeira cobertas de lona. Invariavelmente, existia um toque de recolher às 18 horas. Não havia iluminação. Esse suplício durou 30 dias bem contados. Já estávamos todos cadavéricos, em carne e osso, consumidos pela fome e pela sede e pelas intempéries e, também, pela impossibilidade de dormir.

Mantova, na época do ano em que nos encontrávamos, era quase sempre recoberta de nevoeiro durante toda a noite, prolongando-se até a metade do dia seguinte. Quando o nevoeiro começava a dissipar-se e o céu ficava claro, recebíamos a "visita" dos aviões americanos. Isso acontecia com precisão cronometrada, por assim dizer, na hora de nosso "almoço", que consistia de uma sopa rala, fria, insossa, feita não se sabia de quê. Os aviões lançavam bombas sobre vários objetivos na cidade. Primeiramente, ouvíamos o assobio das bombas e, em seguida, ouvíamos as explosões lá longe, mais perto, e até chegarem nas imediações de nosso campo. Os estrondos eram tão violentos que sacudiam tudo ao redor, como se estivéssemos no epicentro de um violento abalo sísmico. Após a reverberação, começava a cair uma verdadeira chuva de estilhaços ou das bombas ou das coisas atingidas sobre nossas barracas. Alguns desses estilhaços chegaram a perfurar as coberturas de lona. Quando os alemães soavam o alarme antiaéreo, corríamos para recolher-nos aos abrigos subterrâneos, dentro do campo, que os alemães nos forçaram a escavar. Ficávamos literalmente compactados, costa a costa, ombro a ombro, barriga com barriga, até que soasse o sinal de que os bombardeios haviam cessado.

Com efeito, dia e noite ouvíamos o roncar dos motores de enxames e mais enxames de aviões, como aves migratórias de passagem, que sobrevoavam a região de Montova para lançarem suas cargas de milhares de toneladas de bombas sobre alvos no Norte da Itália, na Áustria, e no Sul da Alemanha.

Todo o tempo que fui prisioneiro de guerra foi marcado por diferentes formas de tortura física e mental, sofrimento e angústia, privações e incertezas, em cada instância com características próprias. Mantova, no entanto, me deixou um estigma doloroso e indelével. Já havíamos passado quase três dias sem comer e, praticamente, sem beber, e a fome era excruciante, a ponto de fazer-me sentir a vista escurecer e achar que iria desmaiar. Diz-se que a fome é negra, que a fome absoluta nos leva a comer sola de sapato velho, sabão, cascas ou raízes - o que nos aparece pela frente. Foi em Mantova que, após quase 72 horas em jejum total, os alemães nos deram, por fim, uma tigela de sopa. Sopa especial. Havia sido preparada de uma cabeça de cavalo putrefata. Recendia cheiro intenso de carniça. Mesmo assim, vencendo convulsões de vômito seco, engoli avidamente aquela sopa. Ou a tomava ou tombava de inanição e sede.

A propósito dessa sopa de cabeça de cavalo putrefata, já li em algum lugar que o ser humano possui uma memória olfativa e que certas associações, entre outras, com música, perfume, cores, nos trazem à mente, independentemente de nossa vontade, momentos ou coisas especiais ou marcantes que antes vivemos ou experimentamos. Isso deve ser verdade porque, até hoje, qualquer odor de decomposição ou de putrefação me leva de volta, com nitidez de cores e de detalhes, aquele terrível local e instante.

Mantova, 6 de dezembro de 1944.

Esse foi o dia do embarque fatídico com destino à Alemanha.

Numa exibição macabra, os alemães fizeram "marchar" pelas ruas de Mantova uma coluna, em fila única, de 1.000 homens, meio vivos, meio cadáveres, do campo de prisioneiros até à estação ferroviária. Aqui, ali e acolá, ao longe do percurso, guardando uma boa distância, aglomeravam-se grupos de gente de Mantova, assistindo, tacitamente, aquela parada de farrapos humanos. Era possível discernir mulheres que, apesar de suas próprias privações, enxugavam lágrimas de compaixão por aqueles cujas condições eram piores do que as suas.

Já era noite, e os alemães antes de nos fazer entrar dentro dos vagões, nos deram outra porção de sopa. Em seguida, os guardas alemães iam nos forçando a subir as escadas, quase a ponta de baioneta, enquanto bradavam:

- Schnell! Schneller! - nos ordenando a mover depressa; mais depressa.

Ainda ressoa em meus ouvidos a voz de um companheiro, que cochichou ao pisarmos nos degraus que davam acesso ao vagão:

- Até agora, foi só uma amostra!

E como tinha razão!

Por maior que seja nossa desgraça, Deus jamais nos abandonou por completo. Os alemães não se deram à pena ou não tiveram tempo de isolar os brasileiros uns dos outros. Assim, junto comigo, estavam o sargento José Ferreira de Barros Filho, o soldado Mário Gonçalves, o soldado Elizeu de Oliveira, e o Guilherme Barbosa Mello. Quis Deus que, mesmo naquele inferno, eu tivesse a sorte de, pelo menos, ouvir vozes amigas, vozes irmãs, vozes brasileiras.

Mal engolimos a porção de sopa, fomos tangidos para dentro de vagões de carga, completamente estanques. As únicas entradas e saídas de ar eram pequenos orifícios rentes ao teto, muito bem protegidos por telas de arame grossa, que mais se pareciam com uma grade de ferro.

Em cada vagão de carga, que deveria medir mais ou menos 3 metros de largura por 15 metros de comprimento, os alemães atocharam 50 homens. Naturalmente, não havia bancos. Ajeitamo-nos, como pudemos, no piso de tábuas, recoberto de palha de trigo. Uns sentaram, outros se puseram de cócoras, e muitos ficaram em pé.

Muito tempo depois, o trem começou a avançar na escuridão da noite, inicialmente aos solavancos, dando a impressão de que logo iria parar; em seguida, foi aos poucos atingindo velocidade constante. De dentro do vagão, totalmente às escuras, não podíamos saber por onde íamos passando. Eu só tinha noção do deslocamento do trem pelo barulho das rodas nos trilhos, que eu imaginava ir repetindo em ladainha monótona, repetitiva, interminável: "Café com pão, manteiga não". Café com pão, manteiga não. Café com pão, manteiga não. Infelizmente. Ao pensar em café, pão e manteiga, a fome que já era intensa, se tornou dolorida. Comecei a desejar o que era impossível acontecer: uma parada e uma refeição.

Não se pode dizer que conseguimos dormir. É verdade que muitos simplesmente caíram e ficaram estrados no piso, mais por causa do cansaço e inanição do que propriamente por sono natural.

Passaram-se as horas intermináveis e,numa certa altura notei, pela nesga de luz que entrava pela abertura gradeada, que o dia clareava. Um companheiro esticou-se todo e conseguiu chegar os olhos à altura do orifício de entrada de ar e disse:

- Já devemos estar nos Alpes. Já dá para ver a neve.

Com muita força de vontade e curiosidade, consegui dominar o cansaço, esticar-me, e olhar também pelo respiradouro e ver o panorama que se descortinava. Tudo era branco nas encostas das montanhas, de uma brancura imaculada lá fora. A natureza eterna parecia vestir-se de noiva, indiferente à desgraça de nós mortais, cá do lado de dentro. Senti um sopro de ar gélido na face, e não contive a emoção de ver neve pela primeira vez na minha vida e, por alguns segundos, inspirar e sentir o suave sabor de ar puro. O frio que reinava lá fora não logrou penetrar no recinto estanque em que nos encontrávamos, para amenizar o calor e o abafamento que nos asfixiavam. O ar viciado e o calor se intensificavam cada vez mais, tornando-se insuportáveis.

Todavia, quando parecia que nada poderia se tornar pior, nosso desconforto tomou outra proporção mais tétrica. A única "instalação sanitária" colocada pelos alemães dentro do vagão, foi uma caixa de tábuas de pinho, com areia até a metade e recoberta de feno seco. Ali foram se acumulando e transbordando as fezes diarréicas e a urina fétida de 50 indivíduos. Dentro de pouco tempo, o miasma que exalava veio juntar-se ao mau cheiro e podridão já existente. A urina, diluída com as fezes, começou a filtrar-se pelo feno seco e pela areia, e escorrer e impregnar-se na palha de trigo. Primeiramente, fomos nos amontoando na parte mais seca do vagão, mas a viagem era longa, e o líquido imundo se avolumava, e ajudado pelo balançar e sacudir do trem, penetrou por toda a palha, e espalhou-se por todo o piso, cobrindo todo o espaço de madeira, que não tínhamos mais para onde escapar da chafurda que se generalizou.

Ficamos reduzidos à condição de animais pestilentos à beira da insanidade.

Por ironia do destino, coincidia que, naquela interseção de tempo, lá fora, a natureza ostentava sua brancura e pureza virginais, contrastando como nossa situação dentro daquele vagão, atolados na imundície e excrementos, sufocados e entorpecidos por náuseas, sem esperanças de remissão.

Durante o que supúnhamos ser a travessia pela Áustria, o comboio foi atacado por uma esquadrilha de aviões americanos. Benditos aviões! Ficamos rezando para que atingissem a locomotiva, matassem os alemães, e nos dessem a oportunidade de sair dos vagões e escapar daquele inferno.

Desgraçadamente isso não aconteceu. Possivelmente os aviões não metralharam e nem jogaram bombas sobre o trem, porque os alemães pintavam a Cruz Vermelha nos tetos dos vagões.

Houveram várias paradas, mas os alemães nada deram para comermos e bebermos. A cada uma dessas paradas, os americanos erguiam-se aos orifícios de entrada de ar e punham-se a gritar:

- Water! Water! Water! - clamando por água.

Geralmente eram ignorados mas, às vezes, aparecia, do lado de fora, um soldado alemão e gritava cinicamente:

-Ruhe, verflüchte Hünde! Keines Wasser! Keiner Wasser! - mandando-nos ficar em silêncio; chamando-os de cães malditos; e dizendo que não havia água.

Numa dessas paradas, foi-nos dada uma refeição. Abriram uma nesga da porta do vagão e nos entregaram as "iguarias".

Quem já ouviu falar em maná, o alimento que, segundo a Bíblia, Deus serviu, em forma de chuva, aos israelitas no deserto? Quem ouviu falar em ambrosia, o manjar dos deuses do Olimpo que trazia a imortalidade? Pois é assim que se pode descrever aquela "refeição" - uma miga de pão e um pedacinho de salsicha, menor de que um dedo polegar! Acepipe divino, mesmo sem uma gota de água para facilitar sua ingestão, já que nem saliva tínhamos mais na boca.

Pensando bem, talvez, melhor seria se nada tivéssemos comido, porque aquelas migalhas só serviram para nos aguçar nosso apetite e excitar nossos sucos gástricos, e apenas nos trouxeram mais fome e sede.

Moosburg, Alemanha, 9 de dezembro de 1944. 12:40hs.

Após 3 dias e 3 noites, desde a saída de Mantova, confinados dentro do vagão de carga, chegamos ao campo de concentração na Alemanha, onde tiveram prosseguimento nossas agruras no transcorrer de mais outros longos meses.

Aos poucos, fomos descobrindo que havíamos sido levados para a cidade de Moosburg, no Sul da Baviera, a uma distância de aproximadamente 50 quilômetros de Munique.

Já em 1939, a Polícia Secreta do Estado, conhecida como Gestapo, a abreviação de Geheimes Staatspolizei, o órgão de segurança e repressão da Alemanha Nacional-Socialista, criou uma rede de campos de prisioneiros, espalhada por todo o país, e deram a esse tipo de prisão o nome de Stalag, a forma encurtada de Stammlager que quer dizer, literalmente "campo de base", destinado a confinar praças. Isto é, prisioneiros com posto inferior a segundo tenente.

Desses campos, tornou-se mundialmente conhecido o Stalog 17, por causa do filme do mesmo nome do diretor, escritor e produtor Billy Wilder ( cujo verdadeiro nome é Samuel Wilder), e que muito conhecia de campos de prisioneiros, pois fugiu de sua Áustria natal no início da década de 1940 e foi para os Estados Unidos. "Stalag 17" foi produzido em 1953, e seu ator principal foi William Holden. No Brasil, esse filme recebeu o título de "Inferno 17".

"Nosso" campo de Moosburg tinha designação de Stalag VII A.

Por mais realismo e sofrimento que o filme Stalag 17 tenha retratado, não logrou, como jamais o poderia, transmitir ao espectador, numa moderna sala de cinema, acomodado em uma poltrona confortável, com ar condicionado, ou no aconchego do seu lar, diante de um aparelho de televisão, com uma garrafa de cerveja gelada à mão e um prato de salgadinhos a seu lado, sentir na carne, na alma e no coração, a dor, a angústia, o sofrimento, as torturas, a fome, a sede, a imundície, as doenças, a privação do sono, os trabalhos forçados, pelos quais eu e meus companheiros passamos durante noites e dias, meses a fio, no Stalag VII A de Moosburg.

Embora o trem tivesse chegado à estação de Moosburg nas primeiras horas da madrugada, foi só de manhã, já com o dia claro, que os alemães nos retiraram dos vagões. Levamos algum tempo para nos acostumarmos novamente com a luz do dia, e a respirar ar fresco e recuperarmos a capacidade de caminhar.

Surpresa para superar todas as surpresas!

Mal acreditamos que os alemães, após o desembarque, começaram a nos servir uma "verdadeira" refeição sólida, ao contrário das raríssimas sopas aguadas. A " refeição de boas - vindas a Moosburg" que nos serviram, ou melhor, jogaram dentro dos bonés daqueles que os tinham, ou nas fraldas das camisas seguras pelas pontas dos dedos, formando um cesto. Foram umas cinco batatinhas cozidas, uma pelotinha de chucrute e uma fatia de pão tão fina e transparente, que mais parecia uma tira de papel pardo de embrulho. As batatinhas, que os alemães chamavam de Pellkartoffeln, ou batata com casca, foram cozidas sem lavar, tendo sido jogadas dentro da panela de água fervente, da forma que havia sido arrancadas do solo e, por isso, estavam misturadas com terra, areia, pedrinhas, folhas secas e gravetos. Eram minúsculas, mais ou menos do tamanho de uma noz.

Moosburg não foi o fim da linha para nós, prisioneiros de guerra. Foi apenas o início de uma nova etapa de nossa longa trajetória, de duras penas e intermináveis sofrimentos.

O campo foi arquitetonicamente traçado com ruas em linhas retas, ladeadas de barracos de alvenaria, todos de desenho igual, porém com variação de tamanho. Existiam barracos menores para 200 prisioneiros cada, e barracos grandes para até 400 prisioneiros, cada. Durante minha "estada" em Moosburg, ouvia-se dizer que a população de prisioneiros de guerra aumentava, dia a dia, chegando a aproximadamente 150.000. Essa superlotação pode Ter sido causada pelo fato de que a Força Aliada, ao avançar, ocupava os locais onde existiam campos de concentração, e os alemães transferiam os prisioneiros para aqueles que ainda estavam em seu poder. Quando os americanos ocuparam Moosburg nos meados de 1945, lá encontraram cerca de 80.000 prisioneiros de guerra - inclusive eu.

Da estação ferroviária de Moosburg, fomos levados diretamente para um campo cercado, e lá ficamos três dias para que fosse feita a "triagem". Isso significou, concretamente, que fomos divididos em "manadas" de 200 prisioneiros, que iriam ocupar os diversos "currais".

Ao entrarmos nos "currais", os alemães nos fizeram tirar os uniformes, já esfarrapados, há semanas sem lavar, com uma crosta de sujeira que os tornavam inflexíveis. Deram-nos um "uniforme de prisioneiro", que mais se parecia com um pijama, feito de uma espécie de flanela de inferior qualidade.

Naquele instante, despojaram-me do pouco de dignidade humana que me restava - meu nome.

Passei a ser 142.286.

Esse número estava também estampado em meu novo "uniforme". Só faltavam tatuá-lo no antebraço , como fizeram com prisioneiros políticos, judeus e ciganos. Recebi, ao mesmo tempo, uma placa de identificação, trazendo somente o mesmo número, facilmente quebrável ao meio, ao contrário das placas de identificação brasileira, onde apareciam o nome e o número, igual à placa de identificação do Exército dos Estados Unidos, conhecida, no jargão dos soldados, como dog tag, em alusão à placa de identificação presa na coleira de cachorro. Cada prisioneiro recebeu uma marmita metálica, um garfo e uma colher.

Como já foi assinalado anteriormente, o campo de prisioneiros, de Moosburg era imenso. Nunca soube exatamente qual o número de barracos lá existentes, mas calculo, assim por alto, que tenha sido algo em torno de 750 a 800. Sua área era, certamente, muito maior do que a cidade de Moosburg propriamente dita, que, na época, deveria ter, no máximo, 10.000 habitantes.

Cada "curral" era completamente isolado dos demais por cercas de arame farpado, com fios bem juntos, e uma altura de uns 10 metros, Cada "curral", com seu complemento de 200 prisioneiros, era supervisionado por um oficial da polícia especial, ou SS, que é a sigla de Schutzstaffel, que quer dizer literalmente "Corpo de Proteção".

Os barracos eram desprovidos de móveis, à exceção de camas do tipo beliche. Cada beliche era utilizado por 12 homens. Não havia colchões, roupas de cama, travesseiros ou cobertor . Quando era possível, conseguia-se palha, capim ou jornal velho para forrá-los. Não existiam banheiros ou chuveiros. A água para beber, ou para as necessidades mínimas vinha de uma torneira do lado de fora, ao ar livre. Como a maior parte do tempo que passamos no campo de prisioneiros foi em pleno inverno, a água ficava congelada e entupia o cano. Para o mínimo de limpeza corporal, o jeito era pegar neve e esfregar no rosto. As latrinas eram buracos no chão, com uma armação tosca de tábuas para servir de assento. Como não havia descarga ou desinfetantes, o mau cheiro permeava e recendia longe.

Durante todo o tempo em que fui prisioneiro de guerra, tomei exatamente dois banhos, que só foram permitidos porque existiam muitos parasitas, inclusive, pulgas, piolhos e muquiranas, que infestavam os prisioneiros. Enquanto recebíamos uma ducha de água gelada, nosso "uniforme", que nunca foram lavados, eram colocados dentro de uma estufa de ar quente para "descontaminação". Da mesma forma, foram somente duas vezes que cortei cabelo. Como parte dos pacotes que nos eram fornecido pela Cruz Vermelha Internacional - e se os alemães se dignassem a fazer a entrega - existia cigarros. Já que nunca fumei, usava os cigarros como moeda de troca. Havia sempre alguém que se prontificava a cortar nossos cabelos mediante pagamento sob forma de 10 cigarros. Eu sempre pedia um corte bem rente, ao estilo de "máquina zero", para diminuir a freqüência dos cortes e economizar os cigarros.

Havia também a vantagem higiênica - cabeça pelada não atrai piolhos.

Segundo dados oficiais, 35 brasileiros foram prisioneiros de guerra dos alemães, dos quais um era oficial e 34 eram praças. Não sei exatamente quantos desses estiveram no Stalag VII A, em Moosburg, mas pelo que me foi possível apurar, esta é a lista dos que lá estiveram: Alcides Lourenço da Rocha - Alcides Ricardino - Amynthas Pires de Carvalho, Anézio Pinto Rosa - Antônio da Silva - Antônio Ferreira - Antônio Júlio - Elizeu de Oliveira - Emílio Varole - Geraldo da Silva - Geraldo Flausino Gomes - Guilherme Barbosa de Mello - Guilhermino André de Morais - Hilário Furlan - João Muniz dos Santos - José Ferreira de Barros Filho - José Rodrigues - Mário Gonçalves da Silva - Miltom Bragança - Oswaldo Casemiro Müller - Oswaldo Maurício Varela - Pedro Godoy - Waldemar Reinaldo Cerezoli. Foram 23 na minha contagem, que pode estar errada ou incompleta.

Foram estes os meus companheiros de "curral": Elizeu de Oliveira, que por vontade do destino e para minha satisfação e refrigério, esteve sempre perto de mim, e compartilhamos o mesmo beliche. Sempre conversávamos sobre nossas angústias, sofrimentos, saudade do Brasil e dos nossos parentes e amigos, bem como sobre nossas esperanças, Guilherme Barbosa de Mello, José de Barros Filho, Mário Gonçalves da Silva, e Oswaldo Casemiro Müller. Este era catarinense, descendente de alemães, falava alemão fluentemente, e era nosso intérprete.

Pouquíssimas vezes consegui avistar outros brasileiros no Stalag VII A . Isso só acontecia por ocasião do exercício de minhas "altas funções" de lixeiro e de lavador de latrina, que me levavam aos "currais" vizinhos. Eu sempre os distinguia dos outros prisioneiros, pois é fácil reconhecer outros brasileiros, mesmo de longe, em paragens diferentes e estranhas, pelos jeitos, trejeitos, gestos e modo de ser que são só nossos. Todavia, não me era possível aproximar deles por causa da incessante vigilância dos guardas alemães.

A impossibilidade de fuga de prisioneiros era meticulosamente planejada e executada pelos alemães. Além da separação dos "currais" entre si, o perímetro do campo era circundado, também, por cercas de arame farpado eletrificadas. A curtos intervalos, erguia-se torres de observação, com sentinelas permanentes, armadas com metralhadoras e outras armas, e equipadas com poderosos holofotes. A ordem era atirar para matar, sem perguntar, sem hesitação, sem piedade que permitisse escapar. Com efeito, a segurança se estendia para além do perímetro e das imediações do campo. Existiam contigentes de guardas-florestais, muito bem armados, conduzindo matilhas de cães adestrados para atacar, matar e estraçalhar quem fosse apanhado.

O sistema parece ter-se mostrado eficaz, pois jamais tive notícia de alguém que, pelo menos, tentasse fugir.

Nunca presenciei a execução de prisioneiros pelos alemães, mas ouvi dizer que muitos foram liquidados por rebeldia. Por outro lado, vi, muitas vezes, passar macas com corpos de infelizes companheiros, que haviam sucumbido de doença e inanição, serem levados para serem enterrados.

Até mesmo ir ao "curral" imediatamente ao lado era proibido. Isso só acontecia com a permissão dos alemães, quando éramos designados para compor os "pelotões de faxina" para varrer os barracos e limpar as latrinas de outros "currais". Nessas ocasiões, era proibido qualquer contato com os seus ocupantes. Durante todo o tempo, havia sempre guardas alemães nos acompanhando.

O trabalho forçado foi uma das práticas mais marcantes e perversas nos campos de concentração e de prisioneiros de guerra da Alemanha Nacional-Socialista. Sabe-se que acima dos portões de entrada dos campos de concentração destacavam-se, em enormes letras vazadas de ferro batido, os dizeres ARBEIT MACHT FREI, cujo significado literal é "trabalho traz liberdade". É possível que tenham existido, mas nunca cheguei a ver dizeres semelhantes no Stalag VII A, no entanto, quando recebíamos ordem para trabalhar dentro ou fora do campo, os alemães sempre nos advertiam, NICHT ARBEITEN, NICHT ESSEN, ou seja "não trabalha, não come".

A não ser comida, não há antídoto contra fome. Quando a fome me corroía as entranhas, recorria a toda sorte de elucubração para superá-la. Para isso, tentava o uso da força da mente sobre a matéria, como já ouvi dizer que assim fazem os místicos e faquires hindus; tentava desviar o pensamento para outras coisas diferentes como músicas, rememorar lugares por onde havia passado, relembrar passagens de minha infância, orações. Outras vezes, pensava em comidas de várias cozinhas - italiana, francesa, árabe... Imaginava estar saboreando um suculento prato mineiro, como tutu de feijão, com arroz bem soltinho, lingüiça frita, lombinho de porco assado, bem tostadinho, couve cortada bem fininha e refogada, e bastante torresmo bem sequinho, tudo precedido de uma talagada de cachaça de Salinas para abrir o apetite, e seguido de duas fatias, de dois dedos de espessura, de queijo mineiro bem curtido, e goiabada cascão. E para arrematar, uma caneca de café, pilado e torrado em casa, adoçado com rapadura, fumegando de quente.

A fome, no entanto, não se deixar engambelar. Simplesmente continuava a me corroer as entranhas. Corroeu tanto, que meu estômago atrofiou-se, e permanece atrofiado até hoje.

Diariamente, todos os homens "aptos" de cada barraco eram obrigados a trabalhar. Além das tarefas dentro do recinto do campo, eram escolhidos, em cada barraco, 12 beliches para formar uma turma de 60 homens que deveriam trabalhar fora do campo, geralmente em cidades vizinhas. Somente em caso de doença grave ou de absoluta incapacidade física, éramos dispensados do trabalho forçado. O queixoso era submetido a exame médico e se fosse constatado fingimento de doença para escapar do trabalho, o culpado era severamente castigado. A propósito de exames médicos, não se pode deixar de registrar que recebemos atendimento, com relativa eficiência, apesar da deficiência das enfermeiras e da falta de remédios, por médicos alemães e, também, por médicos americanos que haviam sido capturados.

O trabalho de varrer, remover neve e retirar escombros era muito pesado e os guardas não nos deixavam parar um minuto sequer para fazer uma pausa. Havia, no entanto, uma valiosa compensação para trabalho contínuo e árduo. Os alemães nos alimentavam um pouco mais, cientes de que para o trabalho pesado para os quais nos utilizavam, era necessário um mínimo de vigor físico. Assim, nos davam uma porção de sopa mais substancial, feita do que chamavam de Dörrgemüse, que era uma mistura de vários tipos de legumes secos, além de uma meia duzia das famosas batatinhas cozidas com casca, recobertas de terra, areia, ramagens e tudo mais.

Aproximava-se o dia 25 de dezembro. Espalhou-se um zunzum de que, no Natal, os alemães iriam "presentear" uma caixa completa de ração a cada prisioneiro. Houve júbilo geral.

A Cruz Vermelha Internacional fornecia alimentação para os prisioneiros de guerra. Os alimentos eram os mesmos e em embalagem idêntica à chamada ração C, denominada ração de combate, distribuída aos soldados americanos e brasileiros. Vinha acondicionada em uma caixa, contendo carne e cereais enlatados, mais pacotes de biscoitos e doces, bem como barras de chocolate. Continha, também, um maço de cigarros. Para a higiene pessoal, eram enviados pacotes contendo sabonete, escova de dente, e dentifrício. Os alemães, no entanto, surrupiavam quase todo o fornecimento, de tal sorte que, somente uma caixa, que na frente de batalha era destinada a um homem, no Stalag VII A era dividida entre 12 homens. Isso significava que os alemães afanavam 11 caixas para si. Evidentemente, desconfiávamos da mutreta, mas queixar a quem? Ao bispo? Já miseravelmente subnutridos, não havia escolha, a não ser contentarmo-nos com o que nos davam.

Com efeito, ao meio dia em ponto, do dia 25 de dezembro, para celebrar o Natal, recebemos uma caixa completa de ração. Celebramos, assim, o dia santo com alegria, como se estivéssemos no seio de nossa família. Trocamos cumprimentos em várias línguas - Merry Christmas, Feliz Natal, Joyeux noël, Buon Natale. Os americanos foram os mais efusivos e puseram-se a cantar - Jingle Bells, Silent Night, e outros cantos natalinos. A eles se juntaram os ingleses, que cantaram primeiramente God Save the King. Os franceses cantaram suas canções.

Minhas preces, na noite de Natal, pedindo um pouquinho de alívio do confinamento e da solidão do "curral" foram atendidas. Havia um sargento encarregado de recolher os nomes e fazer uma espécie de escala de serviço para distribuir os homens destinados aos trabalhos fora do campo. Assim, meu beliche foi sorteado para formar um grupo que iria trabalhar em Munique.

Éramos transportados de Moosburg a Munique por via férrea, em vagões do mesmo tipo dos que nos trouxeram da Itália. Saíamos invariavelmente pela manhã, bem cedo, e voltávamos ao campo à tardinha. O trem se deslocava morosamente e levava uma hora e meia ou mais cobrir os 50 quilômetros que separam Moosburg de Munique. Dependendo da guarnição de guardas, cujo humor e disposição variavam, a porta do vagão ficava aberta, o que nos permitia descortinar os panoramas ao longo da ferrovia - aqui campos de cultivo coberto de neve, ali bosques cujos galhos, desnudos de folhas, formavam intrigados desenhos, às vezes pinheiros, sempre verdes, com as copas sobrecarregadas de neve. Apareciam casas de camponeses com as estruturas de madeira típicas da Baviera. Mais adiante, com seus casarios de tetos pontudos aglomeravam-se em torno de torres de igrejas. Fascinava-me, especialmente, ver bandos de corvos, pretos como carvão, sobrevoando em formação, para depois pousarem, todos ao mesmo tempo, nos campos e se contrastarem na neve, como se fossem pingos pretos num lençol alvíssimo.

Na ida e volta de Munique, avistava-se em um certo ponto uma placa que indicava a direção de Dachau. Não suspeitava, naquela época, que tomando aquela estrada logo se chegaria a um dos mais infames campos de concentração alemães, que funcionou, a plena capacidade, de 1933 a 1945, e onde se estima que milhões pereceram.

O primeiro trabalho para o qual fui designado em Munique foi varrer o grande saguão de entrada e remover a neve na frente da estação. Apesar do frio que fazia e da falta de agasalho, era mil vezes preferível trabalhar ali, do que a faina humilhante de limpar latrinas no Stalag VII A . Nem por um segundo sequer, ou mesmo para ir ao banheiro, os guardas deixavam de nos acompanhar e observar, mas, mesmo assim, pela primeira vez em meses, tive a sensação de liberdade.

A remoção da neve era feita com uma pá, para manter o vão das ruas e as passagens desimpedidas. Na medida em que eu ia removendo e jogando a neve, formavam-se barrancos de um lado e do outro. A neve, misturada com a lama da rua, se transformava em chafurda.

Mesmo assim, ver e sentir a neve continuava sendo para mim um novidade exótica, como se houvesse desenrolado um manto branco para recobrir os campos e as cidades. Os telhados das casas eram construídos de forma pontiagudas em função da neve. Se fossem em ângulo aberto, como em climas tropicais, não resistiriam ao peso da neve acumulada e desabariam. Por serem em ângulo fechado, permitiam que a neve escorregasse com maior facilidade. Muitas vezes ficava a contemplar como a neve pendia dos beirais dos telhados, formando curvas graciosas, com babados de pingentes de gelo que, com a luz do dia, ficavam a pingar preguiçosamente.

Um dia, na estação, presenciei a chegada de um batalhão proveniente da frente de combate na Itália. Vieram, aparentemente, para um breve período de descanso e recuperação. Já não eram mais os soldados veteranos, como os que me aprisionaram em Gafagnana, mas na sua totalidade, eram rapazotes imberbes, muitos com uniformes mal-ajambrados e outros até sujos, recebidos com muito afeto e abraços pelos parentes ou populares presentes.

Havia na Estação Central uma espécie de boteco que vendia café - não era realmente café, mas uma infusão de cevada torrada, a qual os alemães davam o nome de Ersatzkaffee, que quer dizer "substituto do café". Pagava com cigarros, que guardava dos pacotes de ração fornecidas pela Cruz Vermelha Internacional, que os alemães se dignavam a nos entregar. Essa infusão tinha apenas uma remota apârencia de café ralo, mas mesmo assim, eu a achava deliciosa, por ser levemente adoçada com açúcar de beterraba e, em especial, porque era quente. Bem, dizer que era quente talvez seja um exagero. Seria mais apropriado dizer que era morna, mas para quem estava exposto a uma temperatura próxima de zero, estava pelando de quente.

Cigarro era, efetivamente, uma das moedas de troca mais valorizadas e preferidas. Nas imediações da estação ferroviária apareciam pessoas trocando as coisas mais variadas, inclusive peças de vestiário, calçados, alimentos. Em algumas ocasiões, logrei burlar a vigilância dos guardas alemães, e trocar cigarros por côdeas de pão preto, feito de centeio, que os alemães chamavam de Roggenbrot, para levar esse pedaço de pão ao voltar ao "curral", para dar a alguns de meus companheiros mais famintos do que eu, usava uma estratagema, ensinada a mim por um prisioneiro americano. Ela consistia em esconder o pão na junção das nádegas com as coxas, pois quando os alemães nos apalpavam ao fazer a revista, dificilmente passavam as mãos naquela região.

Naquela altura da guerra, toda a Alemanha era bombardeada, dia e noite, pela aviação aliada. De nossos barracos, ouvíamos o zoar incessante dos aviões que sobrevoavam a região em direção aos seus alvos. As cidades da Baviera, principalmente Munique, Nuremberg, Fürth, Erlangen, Würzburg, Augsburg, Ravenburg estavam sendo reduzidas a pó.

Os bombardeios se multiplicavam. Prédios que eu havia visto em pé no dia anterior, no dia seguinte eram apenas um montão de escombros fumegantes. O tipo de bombardeiro que mais se via era o Lancaster inglês. Vinham formações sucessivas de aviões, parecendo enxames de insetos, e soltavam de seus ventres, cada um deles, cargas de bombas de 10 a 12 toneladas. O efeito das bombas chamadas "arrasa-quarteirão"ou "block-busters" como os americanos, as chamavam, e das bombas incendiárias era terrivelmente devastador. Sabemos, hoje, que a finalidade dos bombardeios sistemáticos da maioria das cidades alemãs, levados a cabo pelos aviões aliados, era muito mais para produzir impacto moral e psicológico, do que propriamente de caráter militar. Cidade como Munique, Nurembberg, por exemplo, foram completamente arrasadas.

Moosburg também recebeu sua quota de bombas. As defesas alemãs disparavam incessantemente. Ouvíamos as reverberações e víamos bolas de fumaça abrirem-se no céu. Diversas vezes presenciei disparos das baterias antiaéreas alemãs, conhecidas como Flak, a forma abreviada de Flugabwehrkannonen, que significa literalmente "canhões de defesa antiaérea". À noite, tentava contar as trilhas dos projetis luminosos. Ficava torcendo para que os aviões aliados ficassem ilesos, o que geralmente acontecia. Ademais, a Força Aérea Alemã, a Luftwaffe, já havia sido praticamente varrida dos céus. Certa feita, no entanto, cerca de 10 horas da manhã, fiquei comovido ao ver três aviões aliados serem atingidos, praticamente, um atrás do outro. Vi os aviões, primeiramente, deixarem para traz uma trilha de fumaça, depois, envoltos em chamas, se precipitarem em queda, a alta velocidade, até caírem ao solo. Por fim, ouvi as explosões a uma distância de, mais ou menos, um quilômetro da periferia do campo, fazendo tremer toda a área. Vi, também, alguns tripulantes saltarem de pára-quedas, e cheguei a vê-los abrindo-se no ar. Nunca soube se conseguiram chegar vivos ao solo. Ouvia dizer que os alemães metralhavam os pilotos e membros das tripulações quando os pára-quedas se aproximavam do chão.

Não levou muito tempo e fui transferido do trabalho de varrer e de remover neve, para a horripilante tarefa de revolver os escombros para retirar tijolos, madeiramento, barrotes, tábuas, vigas, metal retorcido e, pior de tudo, cadáveres e fragmentos de pessoas que tinham ficado soterrados. O cheiro de carne humana queimada e estorricada é indizivelmente comovedor. Ruas e praças viravam profundas crateras, no fundo das quais era comum ver destroços de bondes elétricos e de outras viaturas.

Já, nessas altura, os transportes públicos, deixaram de circular ou foram destruídos. Em trechos onde ainda havia trilhos intatos, utilizavam-se enormes pranchas sobre rodas, em cima das quais os passageiros viajavam a céu aberto, geralmente em pé, em alguns casos, havia bancos rústicos de madeira, com encosto, em duas fileiras. Quando soavam os alarmes de ataques aéreos, as pessoas pulavam fora, até mesmo com as pranchas em movimento, e saíam em disparada, à procura do primeiro abrigo subterrâneo que pudessem encontrar.

Por fim, já não havia mais prédios públicos para varrer, nem ruas para remover neve e, assim, nunca mais fui levado de volta à Munique. Passamos a ser levados para outros trabalhos de faxina em Landshut, uma cidade mais ao leste, a uma distância de 70 quilômetros de Munique e 20 quilômetros de Moosburg.

Enquanto eu passava por todas essas vicissitudes e penúrias, para a Força Expedicionária Brasileira, para a minha unidade, a 1ª Companhia de Fuzileiros, do Sexto Regimento de Infantaria, eu me tornei um "desaparecido em campanha" e, como tal, fui excluído do "estado efetivo" do Regimento e da Companhia. Em seguida, foi designada uma comissão para "arrolar meus objetos". Essa comissão não deve ter tido muito trabalho para fazer esse "arrolamento", que deve ter sido verificar e fazer um rol de conteúdo dos dois sacos que recebíamos: o saco A, no qual eram colocados os objetos de uso pessoal imediato, e o Saco B, que ficava em um depósito, na retaguarda, e continha as coisas que não fossem de primeira necessidade. A não ser algumas mudas de roupa e o uniforme de passeio, poucos "objetos" haviam.

Minha família, no Brasil, evidentemente, nada sabia do meu paradeiro. Angustiada por minha falta de notícias, minha família, através de meu tio Gesualdo de Paula e Silva, de Nova Lima, Minas Gerais, telegrafou-me, aos cuidados do comando da Força Expedicionária Brasileira, pedindo informações.

Dias depois, recebeu essa resposta, que hoje tenho preservada em meus guardados:

Meu caro Gesualdo de Paula e Silva

Recebi hoje do Comando a incumbencia de responder o seu telegrama enviado ao Cabo Amintas desta unidade. Não sei se se trata de um pai ou irmão, mas qualquer que seja a relação que exista entre si e o nosso Cabo Amintas peço fazer chegar ao conhecimento de sua família a notícia abaixo.

O nosso camarada saiu há cerca de 2 meses para desempenho de uma missão e não mas retornou. Não o conheci mas sei que foi um herói. Infelizmente nenhuma informação obtvemos mais dele não obstante o esforço empregado para adquiri-la. Peço que seja forte e capaz de dar a família dele esta dolorosa notícia. Esperamos que finda a guerra tenhamos a ventura de contar novamente com a presença dele em nossa tropa na qual era tão querido. Não perco a esperança de algum dia poder dar-lhe uma feliz notícia sobre o Amintas. Rezemos por ele para que a Virgem de Aparecida no-lo faça aparecer de novo para alegria nossa e de sua distinta família. Aqui eu fico ao inteiro dispor de todos para maiores esclarecimentos logo que outras notícias forem aparecendo.

Rogo conformar-se com a Divina Vontade e aceitar do capelão da 307 FEB os meus votos de felicidades.

Pe. Hyplito Pedrosa

297-448

Itália, 7-11-44.

Moosburg, 29 de abril de 1945.

Nas primeiras horas da manhã, quando já nos preparávamos para mais uma jornada de trabalhos forçados, ouvi um intenso tiroteio, completamente diferente dos disparos das baterias antiaéreas alemãs e das explosões lançadas pelos aviões aliados. Além disso, os guardas que nos vigiavam e os que nos levavam para o trabalho não eram vistos. Com minha experiência auditiva de distinguir e reconhecer os estampidos das diversas armas, ouvi tiros de carros blindados.

Percebemos que se tratava de um ataque das forças aliadas e, por isso, todos os guardas foram retirados para reforçar a defesa alemã. Moosburg e o Stalag VII A estavam cercados, e desenvolvia-se uma intensa batalha em que as tropas SS opunham forte resistência às forças norte-americanas.

George Smith foi um dos generais mais brilhantes e, ao mesmo tempo, um dos mais controvertidos da Segunda Guerra Mundial. Nasceu na Califórnia, em 1885, e morreu na Europa, em 1945, segundo se lê nos livros de história, num acidente envolvendo a viatura em que viajava. As circunstâncias de sua morte, no entanto, estão cercadas de rumores até hoje não muito bem esclarecidos. O General G.S. Patton combateu na Primeira Guerra Mundial, em 1917, quando fazia parte do estado-maior do General John Pershing. Na Segunda Guerra Mundial, comandou um Corpo de Exército do Norte da África e, em seguida, o VII Exército na invasão da Sicília. Demostrou ser um estrategista brilhante, mas tinha um temperamento violento. Na Itália, foi destituído do comando por Ter esbofeteado um soldado que sofria de fadiga de combate. Na invasão da Normandia, em 1944, comandou o III Exército, e com o habilidoso emprego de blindados e avanço rápido e decisivo, lançou-se França afora, cruzou o rio Reno, atravessou a Alemanha, até penetrar na Checoslováquia.

Nesse avanço me libertou.

Assim que as forças americanas entraram no campo, houve, inicialmente, grande agitação e confusão entre nós, mas logo começamos a nos aglomerar junto às paredes, pelo menos para nos proteger de balas perdidas. Já que nos era impossível transpor as cercas de arame farpado, não nos restou outra coisa a não ser esperar pelo desenlace dos acontecimentos. Ficamos apreensivos porque temíamos que as tropas SS, em vista de seu fanatismo, e desespero final, simplesmente nos exterminariam a todos nós, lançando granadas ou atirando bombas contra nós, antes de se renderem.

Só tive certeza de que sairíamos com vida daquele inferno quando vi um blindado, com a estrela do exército americano e os dizeres US ARMY em seu flanco, derrubar a cerca de arame farpado, para nós inexpugnável, como se fora um tapume de galinheiro feito de varinhas finas.

Não só a emoção e a alegria de sermos novamente homens livres nos aturdiram como, também, nosso estado de fraqueza nos impediram de fazer manifestações de júbilo. Todavia, exultei-me com o sentimento de vingança quando vi os arrogantes e cruéis contigentes SS se renderem, um a um, desde Lagerkommandant, ou Comandante do Campo, até os guardas à famigerada Totenkopfeinheit, ou Unidade da Caveira com Ossos Cruzados, até os corpos auxiliares, formados de homens acima de 60 anos e de soldados mutilados na guerra, mas, ainda, em condições de prestar serviço.

A confirmação de que os alemães haviam subtraído as rações da Cruz Vermelha Internacional a nós destinadas, ocorreu quando foi encontrado um depósito abarrotado desses suprimentos.

Após meses de fome e desnutrição, é necessário retornar a alimentação em quantidades graduais e cuidadosas. Lançamo-nos sobre o monte de caixas numa verdadeira orgia de comer. Os resultados foram desastrosos, e muitos quase morreram de diarréia. Eu escapei porque meu estômago já estava tão atrofiado - e atrofiado ficou para o resto de minha vida - que pouco fui capaz de ingerir.

Em seguida a nossa liberação, iniciou-se o complexo processo de separar, transportar e retornar centenas de milhares de prisioneiros às suas respectivas unidades, espalhadas pelos diversos teatros de operação na Europa. Meu grupo, cujo número de homens não me foi possível sequer calcular, foi levado para a cidade de Ingolstadt, às margens do rio Danúbio, e a uma distância de aproximadamente 70 quilômetros de Munique. Lá fomos colocados em um avião B-25 da Força Aérea dos Estados Unidos. Antes de entrarmos no avião, fomos pulverizados com inseticida para eliminar os parasitas, como pulgas, piolhos e muquiranas, que havíamos apanhado no Stalag VII A . O avião decolou e, após um pouco mais de 2 horas de vôo, chegamos a Namur, às margens do rio Meuse, no centro da Bélgica, onde aterrissamos num aeroporto militar, cuja pista era desmontável.

No dia seguinte, fomos transferidos para a cidade de Reims, no departamento de Marne, ao norte de Paris, na França. Em Reims fomos levados para um campo de separação, identificação e primeiros atendimentos. Reims fica na região de Champagne, onde produz o famoso vinho do mesmo nome. Fiquei emocionado ao contemplar a milenar e histórica Catedral de Reims, danificada pela guerra mas, ainda, relativamente intacta, onde foram coroados os Reis de França de 988 a 1825, inclusive onde Joana D'Arc fez consagrar o Rei Carlos VII, em 1429.

Ao entra na Stalag VII A, em Moosburg, os alemães me tomaram todos os documentos brasileiros, inclusive as placas de identificação que trazia no pescoço e me deram o número 142.286, estampado no uniforme de prisioneiro. Agora, ao entrar no campo de triagem de Reims, e não tendo outra identificação, recebi uma plaqueta com o mesmo número 142.286, que deveria portar até minha identificação definitiva.

Em seguida, no campo de Reims, fomos levados ao banho.

Quem é capaz de imaginar a sensação de limpeza, pureza e leveza, trazidas pelo primeiro banho com água quente, sabonete perfumado, depois de quase 8 meses de suor, lama, imundície, mau cheiro, sempre com a mesma roupa suja no corpo? Pois foi o que eu senti naquele dia em Reims! Ouve-se falar em Nirvana, o inefável estado de ausência de sofrimento, e em que se alcança a plenitude de harmonia, estabilidade e quietude. Pois experimentei Nirvana naquele dia, em Reims! Após o banho, deram-me um uniforme completo do Exército dos Estados Unidos. Meus pés já haviam desacostumados de calçados e, inicialmente, só conseguia caminhar com dificuldade. Depois de lavados e vestidos, fomos submetidos a cuidadoso exame médico. Depois fomos alimentados com dieta adequada para nossa condição de desnutrição.

De Reims, fomos levados para Paris, onde permanecemos por um dia e uma noite alojados na Gere de I'Est. De Paris, prosseguimos por via férrea. A composição parou na cidade de Orange, no departamento de Vaucluse, no Sul da França. Orange faz jus a seu nome pelo cultivo de laranjas na região. Durante esta parada, tive uma experiência paradisíaca da qual só se costuma ler em contos de fantasia. Fomos servidos de suco de laranja gelado, por belas moças da cidade.

Por fim, chegamos a Marselha, no departamento de Bouches-du-Rhône, o famoso porto francês no Mar Mediderrâneo. Lá ficamos num campo de repouso e recuperação do Exército dos Estados Unidos, chamado Campo Lucky Strike que, literalmente, significa "Golpe de Sorte", situado perto do porto.

De Marcelha, fomos transportados, de avião para a cidade de Pisa, na Itália. De lá, fomos levados para Alessandria, em viaturas militares, passando por Torino e Gênova. Em Alessandria, apresentei-me ao comandante da minha unidade, a Primeira Companhia. Fui transferido, em seguida para Francolise, e no dia, 6 de julho de 1945, fui transportado para o porto de Nápoles onde, no mesmo dia, fui embarcado no navio de transporte de tropas da Marinha dos Estados Unidos, o "General Meigs".

Rio de Janeiro, 18 de julho de 1945.

Às 10:00, desembarquei no porto do Rio de Janeiro. Às 14:00, participei do desfile pelas ruas do centro do Rio de Janeiro. Em seguida, fui para a Vila Militar, onde fiquei alojado.

Rio de Janeiro, 27 de julho de 1945.

Fui licenciado das fileiras do Exército, como reservista da primeira categoria, no mesmo posto de cabo que tinha quando saí do Brasil em 2 de julho de 1944.

Nessa data em que fui licenciado das fileiras do Exército, a Força Expedicionária Brasileira, praticamente, já não mais existia. No dia 6 de julho de 1945, data em que o General João Baptista Mascarenhas de Morais e o primeiro Escalão da FEB, sob o comando do General Euclydes Zenóbio da Costa, embarcaram na Itália, de volta ao Brasil, o Ministro da Guerra emitiu um aviso determinando que as unidades da FEB, a partir de sua chegada ao Rio de Janeiro, passariam a ficar subordinadas à Primeira Região Militar, que promoveria o deslocamento dos respectivos efetivos para suas unidades de origem, para a desincorporação dos convocados. Com essa medida, ficou implícito que a Força Expedicionária Brasileira deixou de existir no Brasil.

Houve, certamente, pressa em desmobilizar a FEB e promover o imediato licenciamento de seus integrantes, tanto é que os certificados de reservista para os praças, que seriam desincorporados ao chegarem no Brasil, foram impressos na tipografia A. Macchi & Cia., em Milão, na Itália, e muitos foram preenchidos ainda na Itália.

Nesse açodamento oficial para a desmobilização, nenhum cuidado ou preocupação houve para determinar o estado de saúde, físico e mental, bem como o bem-estar dos expedicionários antes de licenciá-los. É bem verdade que, mais tarde, mas com muito atraso, foram tomadas algumas medidas paliativas para dar amparo e assistência às vítimas dessa lamentável omissão. Essas medidas, no entanto, não foram extensivas a todos.

Eu, desgraçadamente, fui um dos excluídos.

Teve início, então minha, longa e acabrunhante peripécia de ex-soldado, ex-expedicionário, ex-prisioneiro de guerra.

Alguns dias depois de voltar ao Brasil, aproximei-me de meu peso normal. Exteriormente, eu parecia estar inteiro, mas internamente, sofria dos males físicos e psicológicos resultantes da guerra. Para começar, meu estômago, atrofiou pela fome, nunca voltou ao normal. Muitas vezes a ingestão de alimentos é penosa.

Após a desmobilização, voltei a Belo Horizonte e a Nova Lima para o seio de minha família. Minhas várias tentativas para iniciar uma vida civil foram sempre frustradas. Ninguém queria dar emprego a um indivíduo com a estigma de portador de "neurose de guerra".

Fui convocado para o serviço militar em 1942 e servi o Exército durante mais de 3 anos. Encontrava-me, pois, na faixa etária em que o jovem, normalmente, ou freqüenta uma escola ou aprende uma profissão ou ofício que o encaminhará para a vida profissional. Quais eram, então, minhas qualificações para encontrar trabalho condizente? O quê aprendi na vida militar que poderia ser aproveitado profissionalmente na vida civil? Na guerra fui fuzileiro. (vale lembrar que nos anos subseqüentes à guerra ainda não se recrutavam guardas noturnos particulares como hoje em dia, por isso minhas destrezas de fuzileiro eram de pouca ou nenhuma valia.) No campo de concentração, "especializei-me" em limpar latrinas e remover neve. Eram escassas as vagas de limpador de latrina. Por fim, não há neve no Brasil, pelo menos em quantidades que se acumulam a ponto de necessitar de remoção.

Minha tentativa seguinte para tentar a sorte foi ir para São Paulo. As perspectivas foram igualmente pouco promissoras e nada consegui. Enquanto isso, meu estado de saúde se tornava cada vez mais precário. Aconselhado por amigos, procurei o serviço de saúde do Exército para pleitear uma pensão de inválido de guerra. Todas as portas, uma atrás da outra, me foram fechadas.

Fui, então, para o Rio de Janeiro. Lá procurei o Hospital Central do Exército para submeter-me a exames e renovar o pedido de pensão por invalidez. Quando parecia que todos os trâmites haviam sido exauridos e meu "processo" adquirira as proporções de volumoso calhamaço, e que um dos médicos que me examinaram chamou de "burrocracia", eis que fui examinado por uma médica psiquiatra que constatou as maléficas seqüelas que me deixaram a passagem pelo campo de prisioneiros de guerra. Ela compreendeu minha situação e encaminhou a solução da injustiça de que fui vítima. Disse-me ela que, no seu entender, somente pelo fato de eu ter passado pelo que passei nos meses de cativeiro, deveria ter sido reformado, com plenos vencimentos, desde meu desligamento do exército em 1945.

Assim foi que, em 1979, após quase 35 anos contados de indeferimentos, negações, improcedência, alegações de insuficiência de provas, foi-me concedida uma mínima pensão por invalidez.

Poderia ter sido pior!

Hoje o Sr. Amynthas vive em Belo Horizonte, no Bairro Santa Theresa, com 81 anos de idade, mas com aparência de 60. Costumo brincar com ele, dizendo que ainda aguentaria mais dois meses de Stalag VII A.

* Fontes:


Citizens' Net Moosburg Online Stalag VII A
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